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terça-feira, 30 de agosto de 2011

CALVINO, ÌTALO - Eremita em Paris

CALVINO EM NOTAS AUTOBIOGRÁFICAS
Reunidos em livro, textos dispersos em que o famoso escritor italiano trata
de suas viagens, de política e literatura

Sergio Amaral Silva

Apesar da sugestão do título, este Eremita em Paris não tem como cenário
predominante a capital francesa. Na verdade, mais da metade do volume, que
reúne textos autobiográficos de Ítalo Calvino (1923-1985), um dos principais
escritores italianos do século vinte, corresponde ao Diário americano
1959-1960. Esse Diário registra a correspondência enviada pelo consagrado
autor de Amores difíceis a seus colegas de trabalho numa editora italiana,
contendo impressões do viajante pelos Estados Unidos financiado por uma
bolsa de estudos da Fundação Ford.

Nessa jornada de alguns meses, acompanhado de outros três jovens escritores,
entre eles o teatrólogo espanhol Fernando Arrabal, Calvino anota suas
observações sobre várias cidades norte-americanas.Uma delas é Nova York, que
o entusiasma a ponto de afirmar, depois de três dias passados em Washington,
que “já não aguentava mais de saudade de Nova York e logo corri de volta
para cá. Sobre Chicago, o autor diz que ”é a grande cidade verdadeiramente
americana, produtiva, violenta.”
De São Francisco, destacando a colônia japonesa muito numerosa, observa que
“a cidade mista de amarelos e brancos se parece com todas as cidades do
mundo daqui a cinquenta, cem anos.”

Chegando ao sul racista, ele testemunha manifestações populares pelos
direitos civis, lideradas pelo reverendo Martin Luther King, com quem chega
a avistar-se em Montgomery, Alabama.Na introdução do volume, Esther Calvino,
viúva do escritor e responsável pela organização dos textos, salienta que o
marido estava longe de considerá-los acabados e prontos para publicação.
Segundo ela, a importância do livro é “como documento autobioigráfico e não
como prova literária”.Assim, essa espécie de auto-retrato vem somar-se a
outro projeto de memórias que o autor também deixou incompleto,
materializado em seu livro O caminho de San Giovanni.

Eremita em Paris é uma coletânea de textos desiguai, que inclui notas e
depoimentos, cartas, artigos e entrevistas. Por terem sido escritos de forma
esparsa, sem a preocupação de constituirem um volume único, por vezes contêm
repetições, como por exemplo quando o o autor se dedica a recordar fatos
ocorridos em sua infância passada na cidadezinha de San Remo.

Para se prevenir contra possíveis decepções, é recomendável que os
admiradores da obra literária de Ítalo Calvino - e que provavelmente são os
mais interessados nestes apontamentos que incluem assuntos como literatura e
política – não esperem reconhecer no novo livro a escrita rigorosa que é uma
das características marcantes do autor de Se um viajante numa noite de
inverno. Sem uma revisão final por parte do escritor, encontram-se falhas de
pontuação, excesso de abreviaturas e palavras que ele optou por manter em
inglês, o que foi respeitado pela tradutora brasileira, como símbolos da
informalidade desses registros.

Eremita em Paris, de Ítalo Calvino. Tradução de Roberta Barni. Companhia das
Letras, 264 páginas, R$ 39,50.

Sergio Amaral Silva é jornalista e escritor, ganhador do Prêmio Jornalístico
Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, categoria literatura.

Trecho do Diário americano 1959-1960

“Após quatro dias de Nova York, sonho que voltei imediatamente para a
Itália. Não me lembro do motivo pelo qual voltei – por um motivo qualquer
tive vontade de voltar, uma inspiração momentânea, e eis que estou novamente
na Itália e não sei o que vim fazer aqui. Mas sinto a necessidade urgente de
voltar logo para a América. Ninguém na Itália se interessa por eu ter estado
na América, nem por eu ter voltado Sou tomado por um desespero ensandecido
por não estar na América, uma angústia pavorosa, um desejo pela América que
não está ligado a nenhuma imagem específica, mas como se eu tivesse sido
arrancado da vida. Nunca senti um desespero tão absoluto. Acordei tremendo –
dar por mim no esquálido quarto de meu primeiro hotel americano é como dar
por mim em casa.”

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

SANT'ANNA, Affonso Romano de - A cegueira e o saber

O PIOR CEGO É O QUE NÃO QUER SABER ?
Affonso Romano de Sant’Anna mostra em amplo painel, sua visão crítica e lúcida da cultura contemporânea


Sergio Amaral Silva (*)

O poeta e ensaísta mineiro Affonso Romano de Sant’Anna tem mais de 70 livros publicados. Lançado em 2008, o volume A cegueira e o saber reúne ensaios, ou crônicas culturais, como o autor prefere chamá-los. Publicados originalmente em jornais nos sete anos anteriores, os textos tratam de cultura, arte, literatura e o mercado editorial. O título do volume foi inspirado pela hiper-visualidade de nosso tempo, em que algumas pessoas parecem cegas frente ao excesso de informações. Para Affonso, essa super-estimulação provoca uma dificuldade de ver e compreender a realidade que nos cerca. “Temos que aprender a desver, para rever, para que o ato de olhar para dentro possa significar algo”, diz o escritor.

Para exemplificar o que chama de ilusionismo do olhar, Affonso cita textos de autores como H.G. Wells ou Andersen, este na célebre história A roupa nova do imperador. E propõe que a necessária distinção entre a cegueira e o saber seja feita por instrumentos de percepção como a linguagem. Quando Affonso Romano trata de linguagem, a referência à poesia - para ele “uma fatalidade do espírito humano” - é inevitável. Fiel a sua vocação e compromisso com a palavra, ele lembra que as pessoas têm necessidade de se exprimir por metáforas. E cita o escritor Milan Kundera, que diz que a função do poeta é derrubar os muros para ver o que há atrás. Um desses muros contra os quais o poeta investe em seus ensaios é a banalização da cultura, que prejudica a decantação exigida pela poesia.


Dois ensaios do livro contam uma história que Affonso considera pedagógica para artistas que têm pressa em fazer sucesso: a de escritores que tiveram obras recusadas, como Proust que tentou em vão publicar seu Em busca do tempo perdido - tendo sido rejeitado, na editora Gallimard por André Gide – até resolver custear a publicação do primeiro volume. Guimarães Rosa perdeu um concurso literário por voto de Graciliano Ramos. Scott Fitzgerald colecionava 120 cartas negando a veiculação de seus contos. O mesmo aconteceu com Wittgenstein e Tomasi di Lampedusa, entre muitos outros, de uma lista qualificada como espantosa.

Noutro texto, em que afirma que arte é transfiguração, Affonso comenta a polêmica questão da transgressão nas manifestações artísticas. Numa entrevista recente, disse que Hoje, arte não precisa mais ser transgressão, até porque tudo já foi transgredido. Há sim que construir o belo, o superior, com fragmentos do caos. “Se agressão fosse arte, qualquer bandido da esquina seria um grande artista,”concluiu.




Sobre porcos e artistas

Também bastante atual, a abertura de espaço à cultura da periferia (que não é um fenômeno exclusivamente brasileiro) pode assumir um caráter paternalista, porque o centro tende a absorver tudo. A relação entre centro e periferia, que se tornou muito ambígua e complexa, também merece a atenção do autor, para quem “precisamos caminhar para um policentrismo, com equilíbrio entre vários centros”.

Um grupo de seis crônicas das mais interessantes do volume, que chama a atenção por sua originalidade, é o Real romance de M. Haritoff, em que a narrativa de um caso de amor incorpora descobertas do escritor, sobre documentos que ajudam a recontar a história dos últimos anos do império brasileiro.

“Sobre os que se deixam enfeitiçar, se deixam levar pela ideologia dominante, que lhes dá um falso consolo ao andarem com a manada, com essa horda de sonâmbulos nesse delírio de ambulatório da modernidade”, ele lembra a alegoria de Alberto Moravia. Nela, o autor italiano reescreve episódio da Odisséia, mostrando homens que se transformam em porcos por vontade própria e não pelo efeito da mágica da bruxa Circe, como no original de Homero. Afinal, se todos são iguais, alguns são mais iguais que os outros, dizia Orwell em outra célebre parábola suína, A revolução dos bichos...

O livro se encerra com um ensaio dedicado às últimas palavras... A respeito da morte, Affonso mencionou, em entrevista, que o tempo, do qual o homem em geral só se dá conta a partir dos 30 anos, é uma dimensão fascinante: há que dialogar com sua morte, em vida. Os heróis não temiam a morte. O mesmo deve valer para o artista.

Em síntese, trata-se de 80 textos curtos que abordam com enfoque multidisciplinar e múltiplas citações, assuntos que usualmente são apresentados com uma linguagem mais insípida, na universidade. Neles, Affonso Romano usa, como peças de mosaico, inúmeras lendas, mitos e textos literários de clássicos como a Bíblia, Poe ou Saramago. Combinando essas peças com habilidade, compõe um amplo painel crítico da cultura contemporânea. Assim, convida o leitor atento a acompanhá-lo em sua reflexão lúcida e aguda sobre tópicos fundamentais do instigante tema. O livro constitui um relato escrito com autoridade de analista e talento de poeta, dessa fascinante viagem.

A cegueira e o saber, de Affonso Romano de Sant’Anna. Rocco, 312 páginas, R$ 28,50.

(*) Sergio Amaral Silva é jornalista e escritor, ganhador de cerca de 70 prêmios literários.

SANT 'ANNA, affonso ROMA

O PIOR CEGO É O QUE NÃO QUER SABER ?
Affonso Romano de Sant’Anna mostra em amplo painel, sua visão crítica e lúcida da cultura contemporânea


Sergio Amaral Silva (*)

O poeta e ensaísta mineiro Affonso Romano de Sant’Anna tem mais de 70 livros publicados. Lançado em 2008, o volume A cegueira e o saber reúne ensaios, ou crônicas culturais, como o autor prefere chamá-los. Publicados originalmente em jornais nos sete anos anteriores, os textos tratam de cultura, arte, literatura e o mercado editorial. O título do volume foi inspirado pela hiper-visualidade de nosso tempo, em que algumas pessoas parecem cegas frente ao excesso de informações. Para Affonso, essa super-estimulação provoca uma dificuldade de ver e compreender a realidade que nos cerca. “Temos que aprender a desver, para rever, para que o ato de olhar para dentro possa significar algo”, diz o escritor.

Para exemplificar o que chama de ilusionismo do olhar, Affonso cita textos de autores como H.G. Wells ou Andersen, este na célebre história A roupa nova do imperador. E propõe que a necessária distinção entre a cegueira e o saber seja feita por instrumentos de percepção como a linguagem. Quando Affonso Romano trata de linguagem, a referência à poesia - para ele “uma fatalidade do espírito humano” - é inevitável. Fiel a sua vocação e compromisso com a palavra, ele lembra que as pessoas têm necessidade de se exprimir por metáforas. E cita o escritor Milan Kundera, que diz que a função do poeta é derrubar os muros para ver o que há atrás. Um desses muros contra os quais o poeta investe em seus ensaios é a banalização da cultura, que prejudica a decantação exigida pela poesia.


Dois ensaios do livro contam uma história que Affonso considera pedagógica para artistas que têm pressa em fazer sucesso: a de escritores que tiveram obras recusadas, como Proust que tentou em vão publicar seu Em busca do tempo perdido - tendo sido rejeitado, na editora Gallimard por André Gide – até resolver custear a publicação do primeiro volume. Guimarães Rosa perdeu um concurso literário por voto de Graciliano Ramos. Scott Fitzgerald colecionava 120 cartas negando a veiculação de seus contos. O mesmo aconteceu com Wittgenstein e Tomasi di Lampedusa, entre muitos outros, de uma lista qualificada como espantosa.

Noutro texto, em que afirma que arte é transfiguração, Affonso comenta a polêmica questão da transgressão nas manifestações artísticas. Numa entrevista recente, disse que Hoje, arte não precisa mais ser transgressão, até porque tudo já foi transgredido. Há sim que construir o belo, o superior, com fragmentos do caos. “Se agressão fosse arte, qualquer bandido da esquina seria um grande artista,”concluiu.




Sobre porcos e artistas

Também bastante atual, a abertura de espaço à cultura da periferia (que não é um fenômeno exclusivamente brasileiro) pode assumir um caráter paternalista, porque o centro tende a absorver tudo. A relação entre centro e periferia, que se tornou muito ambígua e complexa, também merece a atenção do autor, para quem “precisamos caminhar para um policentrismo, com equilíbrio entre vários centros”.

Um grupo de seis crônicas das mais interessantes do volume, que chama a atenção por sua originalidade, é o Real romance de M. Haritoff, em que a narrativa de um caso de amor incorpora descobertas do escritor, sobre documentos que ajudam a recontar a história dos últimos anos do império brasileiro.

“Sobre os que se deixam enfeitiçar, se deixam levar pela ideologia dominante, que lhes dá um falso consolo ao andarem com a manada, com essa horda de sonâmbulos nesse delírio de ambulatório da modernidade”, ele lembra a alegoria de Alberto Moravia. Nela, o autor italiano reescreve episódio da Odisséia, mostrando homens que se transformam em porcos por vontade própria e não pelo efeito da mágica da bruxa Circe, como no original de Homero. Afinal, se todos são iguais, alguns são mais iguais que os outros, dizia Orwell em outra célebre parábola suína, A revolução dos bichos...

O livro se encerra com um ensaio dedicado às últimas palavras... A respeito da morte, Affonso mencionou, em entrevista, que o tempo, do qual o homem em geral só se dá conta a partir dos 30 anos, é uma dimensão fascinante: há que dialogar com sua morte, em vida. Os heróis não temiam a morte. O mesmo deve valer para o artista.

Em síntese, trata-se de 80 textos curtos que abordam com enfoque multidisciplinar e múltiplas citações, assuntos que usualmente são apresentados com uma linguagem mais insípida, na universidade. Neles, Affonso Romano usa, como peças de mosaico, inúmeras lendas, mitos e textos literários de clássicos como a Bíblia, Poe ou Saramago. Combinando essas peças com habilidade, compõe um amplo painel crítico da cultura contemporânea. Assim, convida o leitor atento a acompanhá-lo em sua reflexão lúcida e aguda sobre tópicos fundamentais do instigante tema. O livro constitui um relato escrito com autoridade de analista e talento de poeta, dessa fascinante viagem.

A cegueira e o saber, de Affonso Romano de Sant’Anna. Rocco, 312 páginas, R$ 28,50.

(*) Sergio Amaral Silva é jornalista e escritor, ganhador de cerca de 70 prêmios literários.

sábado, 6 de agosto de 2011

PRANDI, Reginaldo : Morte nos búzios

REUNIÂO ENTRE CANDOMBLÉ E CRIMES

Sergio Amaral Silva (*)

Especialista em cultos afro estréia como autor policial com história que pode ser lida como um apelo à tolerância religiosa.

O professor titular de Sociologia da USP, Reginaldo Prandi, é um especialista em religiões afro-brasileiras, com diversos ensaios publicados a respeito, sendo um deles, Segredos guardados, de 2005.
Naquele livro, que trata do futuro do candomblé em nosso país, especialmente diante da concorrência com outros credos, Prandi cita o desconhecimento da história da religião dos orixás e de seus rituais como uma das causas do preconceito contra seus adeptos.

Para não recorrer a um conceito um pouco mais complexo como o de multiculturalismo, fiquemos com um mais simples: o de tolerância, para concluir que o Brasil ainda tem muito a evoluir nesse campo. Prova é a difícil inserção do candomblé em nossa sociedade, bastando lembrar que até recentemente a religião era perseguida pela polícia. Justamente por isso, os seguidores resolveram criar um título honorífico, chamado ogã, para distinguir os protetores e depois, os amigos e cultores da tradição dos orixás.

Reginaldo Prandi é um ogã do candomblé. E foi nessa condição que ele voltou a escrever sobre o assunto que domina, desta vez de uma forma totalmente diferente, inventando uma história de mistério e suspense ambientada em terreiros. Assim, surgiu este Morte nos búzios, que marca a estréia do autor no gênero da ficção policial.

Diferentemente de vários de seus antecessores na polícia real, o personagem criado por Prandi para apurar a autoria dos assassinatos do livro não se rende a preconceitos simplistas, embora as vítimas e as cenas dos crimes apresentem referências supostamente religiosas:
as primeiras pistas sugerem tratar-se de sacrifícios rituais, embora o candomblé não utilize seres humanos para essas práticas.

A partir daí, as principais suspeitas são de que o assassino tenha se valido de conhecimentos adquiridos para “assinar” suas mortes de forma a implicar os adeptos do culto de origem africana. Novos acontecimentos se sucedem e o detetive Tiago Paixão se vê envolvido numa trama misteriosa que
inclui interesses políticos e acaba gerando uma mobilização de outras correntes religiosas, a ponto de quase se transformar numa espécie de “guerra santa” à brasileira, fomentada pela imprensa sensacionalista e por outros criminosos que tentam copiar o “serial killer”. No centro das investigações está o terreiro dirigido por Aninha – a mãe-de-santo que, através do jogo de búzios, previu, horas antes, a morte violenta de cada uma das vítimas.

Um dos méritos dessa promissora estréia de Prandi como ficcionista policial é alertar sobre a fragilidade da propalada coexistência pacífica entre diferentes religiões no Brasil. Esse equilíbrio vem se tornando mais instável com o crescimento recente de seitas que pregam abertamente contra outras.Também contribui informativamente ao familiarizar o leitor com aspectos do cotidiano dos terreiros, até então conhecidos apenas por seus freqüentadores.

Morte nos búzios, de Reginaldo Prandi. Companhia das Letras, 248 páginas, R$ 34.

(*) Sergio Amaral Silva é jornalista e escritor.

Trecho:

“Os jornais mais sérios davam versões mais contidas Especialistas entrevistados insistiam que nenhuma religião dos dias de hoje, pelo menos no Brasil, praticava sacrifício humano. Para eles, sacrifício humano estava absolutamente fora de cogitação. Lembravam que quando acontecia um assassinato com a aparência de sacrifício religioso, não se tratava absolutamente de ato religioso, mas de obra de alguém que perdera completamente a noção de realidade. A religião da qual o crime se travestia também era vítima da farsa criminosa, garantiam os entendidos.
Outros jornais exploravam o tema relembrando histórias escabrosas em que exus e pombagiras eram invocados para sugerir ao leitor que o diabo afro-brasileiro sempre voltava a atacar de modo covarde e traiçoeiro.
A propensão de Paixão era não acreditar na possibilidade de sacrifício humano, mas não podia descartar totalmente a hipótese. As religiões proliferavam sem nenhum controle e todo dia surgiam novas igrejas, movimentos religiosos e comunidades de magia. Ninguém podia garantir que não aparecesse uma seita que acreditasse na matança de seres humanos como forma de agradar a Deus ou ao diabo. Desgraças como essa haviam surgido em anos recentes pelo mundo afora. Melhor deixar uma possibilidade em aberto.”

domingo, 31 de julho de 2011

A FIILHA BASTARDA DE D.JOÃO VI

No final do século 19, na Ilha da Madeira, Eugénia Maria sofre com a doença da filha Isabel.Tuberculosa aos quinze anos e desenganada pelos médicos, a menina parece não ter forças para resistir. Então, para animá-la, a mãe resolve contar a história de sua própria família, marcada pelo mistério, já que nunca conheceu o pai.

Para isso, ela recua no tempo, até o nascimento de sua mãe, também chamada Eugénia, em 1775. Filha de Rodrigo José de Meneses, homem de grande cultura que governou as Minas Gerais entre 1780 e 1783, Eugénia de Meneses passou parte da infância no Brasil, mais precisamente em Vila Rica. Ali, foi educada por Felícia, uma mestra influenciada pelos ideais de liberdade que originaram a Inconfidência Mineira.

Atração especial para os leitores brasileiros, este romance histórico de Cristina Norton, cita personagens da Inconfidência, como Cláudio Manuel da Costa, Tiradentes e o Aleijadinho, que no entanto não chegam a participar da trama. A morte de Cláudio, a propósito, foi confirmada por pesquisas como assassinato a mando do Visconde de Barbacena. Escrevendo em 2002, a autora não se envolve na polêmica da (falsa) versão oficial de suicídio, anotando apenas, sobre o fim do poeta: “encontraram-no morto no cárcere”...

Voltando ao eixo da narrativa, Eugénia de Meneses se torna dama da corte e aia da princesa Carlota Joaquina, futura esposa de D. João. Contrariada pelo pai em sua paixão por um escritor inglês, Eugénia acaba se envolvendo com o príncipe-regente, do que resulta uma gravidez imprevista. Vítima de perseguição por parte da princesa, ela deixa a Corte e se refugia na Espanha. Ali nasce Eugénia Maria, a filha bastarda do rei, que a mãe, recolhida um convento, precisa chamar de ”afilhada”.
História e ficção

Hábil combinação entre pessoas e fatos reais e imaginados, o livro, que esteve várias semanas entre os mais vendidos em Portugal é o primeiro da autora a ser editado no Brasil, embora ela tenha publicado
pelo menos outros quatro volumes de ficção em seu país de origem.

A obra exigiu que ela realizasse levantamentos históricos bastante detalhados, o que consumiu cinco anos. Segundo a escritora, seu respeito pela História a tornaria “incapaz de escrever um romance sem fundamento”, destacando ainda a dificuldade de localizar pistas sobre a verdadeira e injustiçada Eugénia: “era como se alguém tivesse apagado seu rastro da terra”,

Cristina Norton, que nasceu na Argentina mas está radicada em Portugal há mais de trinta anos, atualmente promove cursos de literatura e escrita criativa dirigidos a educadores que os utilizam com crianças e adolescentes.

Um dos méritos de seu romance está no cuidado ao recriar os ambientes da Corte, da Colônia e dos conventos portugueses de dois séculos atrás. Revela, por exemplo, que na antiga Vila Rica havia a crença de que as rezas de nove meninas virgens, enquanto o sino da igreja tocava nove vezes, podiam ajudar num parto difícil.

Outro ponto forte, sob o ponto de vista mais humano, está na construção de personagens. Sendo verossímeis e sujeitas a paixões, elas nos ajudam a entender, através de três gerações de mulheres, a opressão e da hipocrisia que, apesar de todas as evoluções e conquistas, insistem em atingir o feminino.

Trecho:

“Vendo o pouco entusiasmo com que a filha levava o garfo a boca, Eugénia Maria lembrou-se de lhe contar a experiência da mãe com os pratos típicos de Minas Gerais, pois não havia nada melhor do que falar em receitas quando se estava à mesa.
- Sim, sim, estranhava a comida. Era muito diferente da brasileira.
A minha avó nem sonhava o que os filhos comiam. Claro que se respeitavam as suas ordens, mas a senhorita Felícia dizia-lhes que, vivendo no Brasil, deviam conhecer os costumes locais. Imagina, era como se aqui na Madeira não comêssemos peixe-espoada com banana frita... O que seria ? A minha mãe e os meus tios gostavam tanto dessa comida que a senhorita Felícia pedia que lha preparassem para eles na cozinha e esses pratos eram servidos unicamente como recompensa por bom comportamento ou boas notas. Ao contar-me essas lembranças, a tua avó sentia na boca, depois de tantos anos, o sabor do quitute feito com carne seca, feijão preto e farinha de pau, tudo cozido, que amassavam com os dedos e lambiam no fim.”


O segredo da bastarda, de Cristina Norton. Record, 336 pág,
R$ 34,90

sexta-feira, 1 de julho de 2011

POESIA EM PROSA, FEITO CACOS DE UM MOSAICO

Adélia Prado lança um romance com características semelhantes às da poesia que a consagrou

(*) Sergio Amaral Silva

A escritora mineira Adélia Prado completou 70 anos de idade e 30 de carreira literária, contados da edição do volume de poemas Bagagem. Ela é bastante conhecida como poeta, considerada uma das principais vozes da poesia brasileira. Todavia, dos quatorze primeiros títulos que publicou, sete são de prosa (contos, crônicas e romances). Seu décimo quinto livro também é: o romance Quero minha mãe.

Contada em primeira pessoa, a história é a de Olímpia, que perdeu a mãe ainda na infância e é atormentada pelo temor de ficar doente, porque acha que a morte a persegue. Neste ponto é inevitável destacar um traço autobiográfico, já que a mãe de Adélia faleceu quando a menina tinha quatorze anos, ocasião em que começou a escrever versos.

Casada com Abel, Olímpia não foge a seu destino, que é o de adoecer realmente e, passada dos 60 anos, começa a pensar que a morte está próxima. (“Fiquei pensando no meu desaparecimento, no meu desvalor. Iguais, um grão de terra e eu”.) Uma de suas primeiras providências é fazer uma lista de parentes e conhecidos a quem comunicar a doença e pedir orações.

A fé é sua companheira constante durante a evolução da moléstia. (“Bajulo Deus, esta é a verdade, tenho o rabo preso com Ele, o que me impede de voar. Como posso alçar-me com Ele grudado à cauda ?”). Aí pode-se encontrar uma marca registrada da literatura de Adélia Prado: um forte sentido de religiosidade. As referências ao catolicismo estão presentes na autora desde as mais remotas experiências literárias, como no desfecho de uma composição escolar no 3º ano primário, inspirada num trecho ouvido da professora na aula de catecismo: “Olhai os lírios do campo. Nem Salomão, com toda sua glória, se vestiu como um deles”.

Com voz própria

Foi depois da morte do pai que Adélia diz ter encontrado a própria fala, uma dicção literária diferente dos autores que admirava. Percebeu então que tanto fazia escrever em verso ou prosa, porque a essência era mesmo poesia e “a palavra era poderosa, podia fazer com ela o que quisesse”. A propósito, seu mais recente livro de poemas, Oráculos de maio, já tem quase sete anos.

O cotidiano doméstico da mulher nas cidadezinhas tranqüilas, que Adélia tão bem conhece, serve de pano de fundo a esta história curta, praticamente uma novela, já que não tem mais de cinqüenta páginas de texto.

A narrativa de Quero minha mãe lembra a técnica do mosaico (ou, se preferirem, o título do segundo livro em prosa de Adélia, Cacos para um vitral, de 1980): é composta de fragmentos, de recortes que se juntam com sensibilidade para mostrar a protagonista, suas recordações e seu micro-universo sob diferentes pontos de vista.

Os muitos admiradores conquistados pela autora talvez o achem curto, mas por certo não se decepcionarão com este novo livro. Nele, irão encontrar uma escritora em pleno domínio de seu ofício, falando à vontade sobre os temas que lhe são familiares, com a linguagem que caracteriza sua obra, num delicado equilíbrio entre o sagrado e o profano. Afinal, como diz uma personagem do livro, citando a máxima de um santo, “a glória de Deus é que o homem viva”. E a literatura é, certamente, um modo eficaz de driblar a morte.

Quero minha mãe, de Adélia Prado. Record, 86 pág, R$ 24,90

(*) Sergio Amaral Silva é jornalista e escritor e mora na Ilha de Santo Amaro, em Guarujá (SP)

Trecho:

“Desertei da mãe de Deus e fiquei órfã duas vezes. Quando nasceram meus filhos – que esta confissão me salve -, amamentei-os com gosto, cuidei muito da comida de todos, dei vermífugo, cálcio, vacinas, básica como um português de anedota. A alegria de quando ganhei a Singer dá a medida de meu projeto doméstico. Passava o dia na máquina, eu, de quem Martina vaticinava: quando casar, seu marido vai comer livro. Detestava me ver ‘passando folha’, queria me ver passando vassoura. Pois fui e sou boa dona de casa, dava e dou notícia de gasto de óleo e sabão. Abel nunca reclamou da minha comida, pelo contrário. Busquei minha meta, meus filhos terão bons dentes, comerão o pão com o suor do rosto, como meu pai e Abel, serão cristãos fervorosos e tementes a Deus, só muito velhinhos morrerão e irão para o céu, lá sim, lugar de demasias. Por aqui nada de excessos, como está já está bom demais.”